Mães jovens são as principais vítimas de feminicídio no DF
De 1º de janeiro a 10 junho, 12 mulheres foram assassinadas na capital por questões de gênero, um aumento de 50% com relação ao ano passado, quando foram registrados oito casos. Com idade média de 35 anos, todas tinham filhos: são 41 órfãos da violência
O Distrito Federal enfrenta alta nos casos de feminicídio em 2025. De 1º de janeiro a 10 de junho, 12 mulheres foram assassinadas na capital por questões de gênero, um aumento de 50% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram registradas oito mortes. As vítimas tinham de 17 a 51 anos, nove delas com menos de 40 anos. Três possuíam medida protetiva e seis sofreram violência antes. Jovens e, todas elas, mães.
Mas quando uma mulher é silenciada dessa forma, a dor não para nela. Neste ano, os feminicídios deixaram 41 órfãos. Filhos que agora crescem marcados por uma ausência brutal. Em fevereiro, Géssica Moreira de Sousa, de 17 anos, foi assassinada com um tiro na cabeça, disparado pelo namorado, dentro de uma igreja evangélica, na frente da filha de três anos. Um namoro marcado por agressões desde o início, com um fim trágico.
A mãe da adolescente, Sidineia Moreira, conta que o crime não tirou só a vida de Géssica, mas desestabilizou uma família. “Eu tinha quatro filhos. Agora, cuido da filhinha que ela deixou. A menina viu tudo e não esquece. Toda hora pergunta pela mãe e toda noite quer saber ‘por que o pai matou a mamãe?'”, relata Sidineia, que abandonou o trabalho e hoje sobrevive com o pouco que o marido consegue trazer para casa.
Problema estrutural
Para a antropóloga e professora da UnB Débora Diniz, a violência contra a mulher, especialmente o feminicídio, é um problema estrutural e enraizado em diversos aspectos da sociedade. Ela lembra que o agressor costuma ser um “homem comum”, pai, vizinho, namorado, filho, o que torna mais difícil identificar, enfrentar e prevenir esses crimes.
Débora afirma que, para muitas mulheres, fatores como vulnerabilidade econômica, raça e a condição de mães, com poucos recursos, ampliam a dificuldade para buscar proteção. “Quanto mais vulnerável é a mulher nas estruturas sociais, seja pela raça, pela condição econômica ou pelo lugar que ocupa na organização da vida comum, mais difícil se torna acessar os chamados mecanismos de fuga. Seja o apoio da delegacia e do sistema de Justiça, seja da rede de saúde. Tudo se transforma em barreira”, ressalta.
Um levantamento da SSP/DF mostra que 67% das vítimas de feminicídio eram mulheres pardas, 29% eram assalariadas e 23% trabalhavam em casa. Os números escancaram o recorte social da violência, mas a advogada Malu Marigia destaca que o feminicídio atravessa todas as classes e idades, o que muda é a forma como ele se manifesta.
“Entre mulheres de maior poder aquisitivo, o silêncio costuma estar atrelado à vergonha e ao medo do julgamento da família e da sociedade, além da dependência financeira. Entre as mulheres em situação de maior vulnerabilidade, o afeto e a esperança de mudança do agressor muitas vezes adiam a denúncia”, ressalta.
Quanto mais precoce for a intervenção, maior a chance de interromper esse ciclo, antes que ele evolua para danos irreversíveis, físicos ou emocionais. O advogado Rubens Pires explica que a Lei Maria da Penha se aplica a relacionamentos entre jovens, mesmo que não haja coabitação ou vínculo formal.
Ciclo que se repete
Relacionamentos abusivos nem sempre começam com um tapa. Podem se iniciam com sutilezas que confundem a vítima: ciúmes excessivo disfarçado de cuidado, controle sobre roupas, amizades, redes sociais. Esses são os primeiros sinais de alerta de um ciclo que, se não interrompido, pode culminar em violência ou em um feminicídio.
A maioria das vítimas desse crime no DF em 2025 tinham entre 20 e 30 anos de idade. Segundo a SSP/DF, 38% delas cursaram até o ensino fundamental. Para muitas, o acesso à informação sobre o que caracteriza uma relação saudável e seus direitos é limitado e persite a romantização da ideia de “amor que corrige” ou de “ciúmes como prova de afeto”.
Juliana Monteiro, psicóloga clínica, explica que o ciclo da violência é o principal responsável por aprisionar a vítima nessa dinâmica abusiva e ele é composto por três fases. “Primeiro, a fase da tensão, quando surgem os sinais de instabilidade, explosões de raiva, insultos, ameaças. Em seguida, vem a fase da agressão. Toda essa raiva foi acumulada e é liberada de uma forma descontrolada. A pessoa explode de forma violenta.”
De acordo com ela, o que dificulta a vítima sair da relação é a fase que vem a seguir, a de lua de mel. “É quando o agressor se mostra arrependido e começa a se comportar de maneira diametralmente oposta a como estava se comportando antes. Pede perdão, faz promessas, se torna carinhoso e atencioso.” Nessa alternância entre violência e afeto, a vítima geralmente acredita que o agressor mudou e o ciclo recomeça, ficando cada vez mais violento e diminuindo o tempo entre as agressões, segundo a psicóloga.
Essa manipulação emocional, somada à falta de apoio familiar ou institucional, dificulta a denúncia. Muitas jovens permanecem nas relações por dependência emocional ou financeira, medo de represálias, vergonha ou pela ideia de que podem “salvar” o agressor.
“Há mulheres que não têm rede de apoio, têm filhos pequenos e não têm para onde ir. Outras têm medo de denunciar e ‘estragar a vida’ do agressor. E há as que acreditam que ele vai mudar. Tudo isso aprisiona emocionalmente”, diz Juliana.
Feridas profundas
Os 12 feminicídios registrados em 2025 no DF deixaram 41 órfãos, 36 menores de idade. Além da perda irreparável da mãe, esses filhos carregam feridas emocionais profundas, que comprometem o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social.
Segundo a pedagoga e psicopedagoga Larissa Pontes, a ausência abrupta e violenta da mãe pode causar sentimentos de abandono, culpa, medo e insegurança, afetando a formação da identidade. “O impacto na saúde mental pode se manifestar como transtorno de estresse pós-traumático, transtornos ansiosos e depressivos, reações de luto complicadas, regressão comportamental e dificuldades de concentração e memória”, ressalta.
Na idade escolar, esses fatores podem impactar no processo de ensino-aprendizado e levar a um baixo rendimento, evasão, comportamentos desafiadores e isolamento social. A pedagoga ressalta a importância dos professores e educadores para identificar esses sinais. “O olhar psicopedagógico propõe que esses sinais não sejam vistos como ‘problemas de comportamento’, mas como linguagens do sofrimento que precisam ser acolhidas e compreendidas em sua complexidade”, afirma a profissional.
A escola, mesmo sem preparo específico para traumas profundos, pode e deve atuar como rede de apoio, oferecendo escuta qualificada, espaços seguros e trabalho colaborativo com psicólogos escolares e conselhos tutelares.
Políticas públicas
O Programa Acolher Eles e Elas, da Secretaria da Mulher do DF (SMDF), é uma política pública de assistência financeira e psicossocial para órfãos do feminicídio, que busca amparar crianças e adolescentes que perderam a mãe. Atualmente, 172 beneficiários estão cadastrados no programa.
Para solicitar a assistência, os responsáveis pelos órfãos podem procurar diretamente a SMDF, sem necessidade de advogado, apresentando documentação específica. O benefício é para órfãos menores de 18 anos ou até 21 anos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, residentes no DF há no mínimo dois anos. O contato pode ser feito pelos telefones (61) 3330-3118 e (61) 3330-3105.
Tipos de violência contra a mulher
Violência física: embora muitas vezes a violência não comece fisicamente, ela pode escalar para agressões como empurrões, chutes, beliscões, tapas e evoluir para lesões corporais graves.
Violência psicológica: ameaças, manipulação emocional, isolamento social, “lei do silêncio”, provocações, controle excessivo da vida pessoal (roupas, amizades, rotinas), vigilância excessiva, humilhações ou constrangimentos constantes (em público ou isoladamente), invasão de privacidade (senhas, localização, celular) e culpabilização constante.
Violência moral: calúnia, difamação e injúria dentro da relação. Exemplos incluem falar mal da mulher ou inventar mentiras sobre ela, como falsas traições.
Violência patrimonial: retenção de documentos, destruição de bens ou controle financeiro sobre a vítima.
Violência sexual: qualquer ato sexual forçado, mesmo dentro de um relacionamento, é considerado crime.
O advogado Rubens Pires sinaliza que, ao identificar qualquer desses sinais, o ideal é registrar boletim de ocorrência, buscar delegacias e, se possível, solicitar medida protetiva com base na Lei Maria da Penha. “A vítima não precisa de um advogado para pedir proteção. O Estado tem o dever de acolher”, esclarece.
Onde pedir ajuda
Ligue 190: Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Uma viatura é enviada imediatamente até o local. Serviço disponível 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
Ligue 197: Polícia Civil do DF (PCDF).
E-mail:[email protected]
WhatsApp: (61) 98626-1197
Site:www.pcdf.df.gov.br/servicos/197/violencia-contra-mulher
Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher, canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de reclamações, sugestões e elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam): funcionamento 24 horas por dia, todos os dias.
Deam 1: previne, reprime e investiga os crimes praticados contra a mulher em todo o DF, à exceção de Ceilândia.
Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.
Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673
E-mail: [email protected]
Deam 2: previne, reprime e investiga crimes contra a mulher praticados em Ceilândia.
Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia
Telefones: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438